[Enem] Lupe de Lupe e os Pré-Socráticos



Mont Sainte-Victoire and Château NoirPaul Cézanne,.1904 - c.1906


Não podia deixar de compartilhar com vocês uma coisa. Ano passado estive no show do Lupe de Lupe com outra banda chamada Baleia. E uma das músicas que eles tocaram foi Frágua, que versa sobre os elementos.

Bem rapidinho, só pra rever: lembram-se que o peteleco inicial pro pensamento filosófico cosmogônico se dá com Tales de Mileto? Que profere algo de início ridículo, mas que teria algo de crucial? "Tudo é água", parece uma ideia absurda. Parece até difícil levá-la a sério. Mas são algumas coisas que a gente pode destacar nela: a origem das coisas, a pretensão de fazer o pensamento caminhar com a totalidade, sem fábulas e mitos, e o pensamento da unidade: "Tudo é um", um princípio (arkhé). Ademais, se a realidade de tudo antes era dependente e restrita aos deuses, agora tudo se organiza apesar dos deuses. A natureza (physis) é a força de produção e organização do mundo. É a partir dela que se pensa a força de criação da ordem a partir do caos.



O Victor Brauer (imagino que tenha sido ele o compositor dessa faixa) usa o tema da água e dos outros elementos para pensar a transformação de si, a exigência até mesmo de que, ao se entender enquanto água e virar água, a transformação possa ser conjunta, e não mais determinada de fora pra dentro (não só determinado pela água, mas ter a água como causa interna).

Criar um problema pra mais tarde resolvê-lo, que ele canta no início é quase a dinâmica da produção filosófica (que não busca resolução alguma antes de formular bem o problema, um exercício que Sócrates fará). Ouvir lava, vidro, o fogo estar amarrado à criação, e a palavra repetida água, água, água convida a gente a se deslocar para o que podemos imaginar que movia os pré-socráticos a ter como candidatos a vida sensível para ordenamento cósmico. É possível ouvir essas coisas, extrapolar a existência do fogo até a criação da ordem das coisas.

E mais! O Brauer até parece exortar, convocar, conclamar a água para conversar com ele, para ajudar ele a compreender a si mesmo (o mote socrático!). Ao final da primeira parte da música, antes do bumbo entrar, ele repete "água, água, água, água" quase em tom ritualístico. E mais tarde torna a repetir a exortação.

Queria que, caso possam e tenham interesse, ouvissem um pouco da música, notando as transformações que esses elementos produzem no sujeito (sentimento de correr cansado, de se moldar pelas necessidades, permear e destruir, movimento = limpeza; repouso = imundície, etc...). É quase possível dizer que o Victor Brauer atualiza as condições de criação de Tales de Mileto pro século XXI. Talvez isso possa deixar mais fácil da gente enxergar o momento da criação filosófica (o de Tales, o de Bauer e, quem sabe, procurar enxergar o nosso próprio momento).

Brauer tem como candidato a água para explicação existencial da vida ou como a apresentação das transformações da existência. Mas ele passa por todos os elementos e até por um zoomorfismo, todos como candidatos para a corrupção, o perecimento, a transformação e degradação das coisas todas. Até coloca em questão a eternidade da repetição e as conjugações do verbo ser (O que é o que há de ser, o que se fez fará / Nada de novo sobre o chão e sob o sol / Água).

Adianto também, ele antecipa os temas de Heráclito de Éfeso (um filósofo jônico muito importante pra filosofia dialética do século XIX adiante). "Quando o fogo queima é por causa de uma guerra? / Ou é por causa de um conflito inerente / Ou ele cumpre o seu destino nessa terra?"

Gosto muito da técnica de guitarra dessa música nas linhas iniciais, que acompanham uma chuva que parece bater no teto de uma casa (a mente de Brauer sendo provocada, instigada pela água?). Sem contar com os bends finais da guitarra, que de tanto persistirem no tema da água, tornam difícil ouvir Frágua sem sentir alguma lei hidrodinâmica na criação sonora.

E as linhas finais de Frágua são como um poema Sobre a Natureza do homem. De alguma inspiração pré-socrática, mas antes de astronômica ou cosmológica é um pouco mais existencial (mas que também se alça à totalidade pra compreender a si).

Viro chuva, viro terra, viro rio /
VIro fogo, viro ar, viro nuvem /
Viro chuva, viro homem, viro velho /
Viro morto, viro terra, viro rio /
Viro água

Abraços, boa escuta!

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