[ENEM] Renascimento, mecanicismo e a Morte da Natureza

 Boa tarde estudantes,


Queria compartilhar novamente um pouco com vocês. Olhem essa xilogravura de um livro de anatomia de 1543, na virada do renascimento pra era moderna, chamado Da estrutura do corpo humano, de Andreas Vesalius. 



A deixei no tamanho original pois, o que temos aqui é a dissecação do útero de uma mulher, observada por uma grande multidões de homens. O experimentalismo nascente dessa época, que vimos em Bacon, surge com clareza nessa imagem. É o desvendamento dos segredos da natureza, e o que fica conhecido como um "desencantamento do mundo". O indivíduo aqui é uma anatomia de partes, e não um sujeito pleno, sagrado, ativo. A natureza do corpo é simplesmente extensão e movimento, passiva diante do sujeito que a conhece (veremos isso no Descartes: o pensamento e a extensão). Conhecer algo significa quantificar, físico-matematica-geometricamente, a natureza cuja linguagem é, igualmente, matemática. Não há qualidade intrínseca, própria a cada objeto. Somos todos, enquanto corpos, indiferentemente uma massa de matéria em movimento. Na nota 136 do Calibã e a Bruxa, lemos:

Assim é como Nicolas de la Fontaine descrevia a atmosfera criada em Port Royal pela crença no automatismo dos animais: “Apenas havia um solitário que não falasse em autômato […] Ninguém dava importância ao fato de golpear um cachorro; com a maior indiferença lhe davam pauladas, rindo daqueles que se compadeciam de tais bestas como se estas tivessem sentido dor de verdade. Se dizia que eram relógios, que aqueles gritos que lançavam ao ser golpeados não eram mais que o ruído de um pequeno impulso que haviam colocado em marcha, mas que de modo algum havia nele sentimento. Cravavam os pobres bichos sobre tábuas pelas quatro patas para cortá-los em vida e ver a circulação do sangue, que era grande matéria de discussão.” (Rosenfield, 1968, p. 54)

Vinha dizendo a vocês que a modernidade é um ponto de virada e de ruptura impressionante com o mundo antigo, seja ele renascentista, medieval ou grego. A cosmologia renascentista operava com uma imagem de natureza feminina, uma mãe-geratriz, Gaia, sagrada, viva, ativa e sensível, orgânica e integradora. A partir da modernidade, com Francis Bacon, Galileu, Descartes, Hobbes e outros, a natureza será vista do ponto de vista mecânico, mera extensão e movimento automático. Isso está relacionando à relação que nós humanos entretemos com a Terra. Já havia adiantado a vocês que o texto do Ailton Krenak nos ajuda a pensar nisso. Algumas das razões desse antropocentrismo masculinista que surge na modernização podem ser elencadas: "a nova cosmologia com a queda do geocentrismo e, portanto, a retirada da Terra como locus privilegiado do mundo; a matematização da natureza; o experimentalismo e o desenvolvimento de instrumentos tecnológicos; o ritmo alucinante da sociedade industrial; a emergência do paradigma patriarcal [...]; o desprezo, cada vez maior, pelo corpóreo" (p. 76).

E olhem só o que Carolyn Merchant, autora citada e inspiradora de Silvia Federici diz em The death of nature (A Morte da Natureza):

A metáfora da Terra como mãe que amamenta desapareceu gradualmente como imagem dominante, à medida que a revolução científica mecanizou e racionalizou a visão de mundo. A segunda imagem [...] trouxe uma importante ideia moderna, o poder sobre a natureza. Duas novas ideias, de mecanicismo e de dominação da natureza, tornaram-se conceitos centrais do mundo moderno. Uma mentalidade organicamente orientada, na qual os princípios femininos desempenhavam um papel importante, foi minada e substituída por uma mentalidade mecanicamente orientada que ou eliminava, ou usava princípios de maneira exploradora. À medida que a cultura ocidental se tornava cada vez mais mecanizada nos anos 1600, a terra feminina e o espírito terreno virgem foram subjugados pela máquina. (citado de Zaterka e Mocelin)

 

Essa mentalidade organicamente orientada é a alquímica do renascimento: a mãe Terra como alma universal, anima mundi. O feminino, o vivo, o útero e a mulher eram constitutivos dessa visão ontológica e cosmológica da natureza. O mundo existia de forma ativa, independente e interconectado. Ao contrário da natureza passiva dos modernos, mecanicamente regulada e sem espírito. Se na modernidade o tempo é uma grandeza física e o universo uma máquina regulada, na alquimia o tempo é a geração da vida, crescimento das coisas na terra e corrupção dos corpos na morte. A natureza era orgânica e dinâmica, geradora do existente. 

DESCARTES: A REPRESENTAÇÃO DO PENSADOR E O CORPO-MÁQUINA DO CAMPONÊS

Comparem essa gravura de um camponês, feito máquina de colher grãos, com as partes de seu corpo compostas de foices, cestos, tridentes, escadas, moinhos, engrenagens e folhas, utensílios agrícolas (p. 264, Calibã e a Bruxa).


Com essa outra pintura , O Atrônomo de Vermeer, de 1668. 



O camponês é mera máquina, autômato de produção de alimento. Seu corpo é mecanizado, ele, um homem máquina. A anatomia humana, a partir do século XVII, tinha por analogia os objetos das oficinas: "os braços eram considerados como alavancas, o coração como uma bomba, os pulmõe como fole, os olhos como lentes, o punho como um martelo", é aí que Federici conclui: "a máquina estava se convertendo no modelo de comportamento social". E isso é crucial para a política e o cálculo econômico.

O importante é compararmos com O atrônomo de Vermeer. Nele, o homem que ali aparece não é uma máquina. É o sujeito que pensa, que domina o mundo exterior com suas representações (o globo, cartografia do mundo). Ainda que a luz do sol adentre o quarto do astrônomo, a confusão dos sentidos, é a luz da razão, clara e distinta, da representação geométrica do mundo na cartografia do globo terrestre que interessa ao astrônomo cartesiano. Descartes divide o sujeito interior do mundo exterior. No seu dualismo: a substância pensamento e a substância extensão. O astrônomo da pintura de Vermeer é aquele que ordena, pelo pensamento, o mundo exterior que o inunda em confusão. No método cartesiano, aceitamos primeiro verdades evidentes, simples (geométricas, aqui), recusando o mundo sensível, confuso, obscuro. O astrônomo domina os corpos fora de sua janela por meio das representações do pensamento. Um dos corpos que essa figura virá a dominar é a do camponês, ou do trabalho. O pensamento dominando os corpos. O pensamento descorporificado. 

Há quem situe o cogito (o Eu que pensa, a coisa pensante) cartesiano como figura burguesa e o corpo extenso, na representação do camponês, como força de trabalho, físico-matemática, a coisa extensa. Como se, ao invés do globo terrestre na pintura do Vermeer, tivéssemos planilhas do excel, com números de matrícula, CPF, lugar na carteira, leito de hospital, fitas identificadoras nos braços e etc.

Texto escrito com base em Ensaios de História e Filosofia da Química. de Luciana Zaterka e Ronei Clécio Mocellin.  Técnicas do Observador, Jonathan Crary. Calibã e a Bruxa, de Silvia Federici.



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